Se desde o princípio a realidade de uma criança está recheada apenas por fantasias e ilusões, como será que ela vai receber o mundo real que a espera fora de casa?
Compreendendo a Criança...
Cinco sentidos, uma automotivação singular e predisposição sempre novinha em folha para explorar seu mundo, assim são as crianças. Sem memórias do passado; sem resíduos ou lembranças capazes de lhes criar conflitos de qualquer natureza. Sem ressentimentos ou mágoas pessoais; sem inclinações sectárias ou dogmáticas. Sem ideias ou ideais; sem conceituação alguma do que é o viver, sem juízos sobre pessoas ou qualquer outra coisa. Um recipiente vazio que começa a ser preenchido com a mentalidade que dá forma e conteúdo a psique do mundo.
Sabemos bem o que é uma criança, embora ignoremos como ela psicologicamente se forma em seus primeiros anos de vida. Por isso mesmo, a seguir, traçamos um roteiro; um resumido compêndio de cada um desses estágios etários.
Aos dois anos de idade a criança é incapaz de imaginar a existência de outro mundo além daquele hospedado no interior do seu cérebro. Ou seja: se ela é capaz de ver, existe; caso contrário, não existe. Ela não sabe que as outras pessoas são capazes de ter vida própria, ou seja, que assim como ela, são indivíduos.
Simplesmente não é capaz de deduzir que os outros podem prever suas ações. Criam um mundo paralelo, onde vê uma pessoa, mas não concebe que aquela pessoa também seja capaz de vê-la. Por exemplo, se fecharmos seus olhos com as mãos e dissermos que não podemos vê-la, para ela isso é a mais pura verdade, pois se ela não consegue ver, a mesma regra se aplica aos demais.
Saindo de um ponto de vista unicista, onde imagina que apenas suas necessidades são reais, a partir dos sete anos, já terá consciência de que os outros são capazes de pensar. Também já terá maturidade suficiente para abstrair sobre o que os “outros” supostamente estão pensando. Já se vê como uma entidade individual separada das outras; sabe que pensa, e que os outros estão aptos a fazer a mesma coisa. Já é capaz de antecipar eventos e consegue fazer planejamentos simples.
Se pudéssemos enumerar cada fase da vida de uma criança em ciclos ou estágios preliminares de sua caminhada psicológica, é bem possível que tivéssemos um quadro de acordo com o resumo a seguir...
A criança nasce, e eis o momento da criação do veículo que personificará o indivíduo. Este compreende todo primeiro ano de vida, e embora ela não possua uma identidade, já incorpora todos os elementos necessários para que um dia seja capaz de construir uma. Também não é burra, apenas inocente. Já tem um cérebro e os sentidos, e também alguns processos idiossincrásicos, e embora tudo isso ainda esteja em fase de ajustes, são completamente operacionais. Mas ainda não é capaz de observar as coisas com interesse real, o que só vai ocorrer quando aprender a focar sua atenção de maneira intencional. E neste primeiro ano ficará apenas nisso.
Nesse período ela vai concluir a base de onde poderá interpretar aquilo que vê. Mas, ainda assim, seus sentidos já são capazes de memorizar conscientemente sentimentos simples, tais como: carinho, satisfação, agressividade e outros. Tem forte necessidade de companhia, pois ainda se sente sozinha, apesar da proximidade dos parentes. Sente que lhe falta alguma coisa, algo que virá quando o segundo ano chegar ao seu ciclo de vida.
Concluída essa fase, entra no segundo ano de vida. Agora, já possui toda base orgânica bem estruturada. Um cérebro constituído com suas funções plenamente ativas e os sentidos começam a registrar intensamente suas memórias documentando tudo que ocorre à sua volta. Isso não significa que seja capaz de discernir, pois ainda não tem noção de que o mundo existe e funciona à sua revelia. É egocêntrica e não imagina que as pessoas tenham necessidades, sintam dor ou prazer, assim como ela. Mas, nesse período, está concluído o alicerce que dará sustentação ao terceiro ano.
No terceiro ano, ela descobre que as pessoas têm necessidades, e assim como ela, são capazes de sentir dor e alegria. É o estágio de infância onde mais aprenderá. É o período de maior atividade psicológica de toda sua vida, e seus sentidos estão mais aguçados que nunca. Nesse estágio sua sensibilidade atinge seu mais elevado grau de percepção. Poderíamos definir a metade do segundo ano e todo o terceiro como a fase embrionária da psique, o ciclo onde sua estrutura intelectual ganha sua forma definitiva. Está nascendo o ego separatista, a individualidade consciente. Nessa ocasião irá acumular todo conhecimento necessário para o quarto ano, a época das explorações dentro do mundo das coisas físicas e de ativa interação com o concreto.
No quarto ano, o mundo concreto à sua volta toma forma. As coisas passam a existir de fato. E se antes o concreto era motivo de simples curiosidade sem propósito, agora, ela passa a direcionar suas demandas. De repente passa a sentir a necessidade de acumular e de guardar para si os objetos de maior apelo visual ou sensorial. Torna-se seletiva para coisas e pessoas.
E nessa etapa, apenas as pessoas que suprem suas necessidades materiais ou psicológicas são bem vindas. Todas as coisas ganham as formas definitivas e ela passa a se preocupar com a estética desses objetos. E ao incorporar o senso de estética, começa a tecer seus próprios padrões. É como se o mundo, de repente, se materializasse diante de si, novinho em folha, pronto ser explorado e lhe dar satisfação, algo que ela agora, conscientemente, passa a valorizar. E a base para o quinto ano está pronta.
No quinto ano, o conceito de concreto já é coisa do passado. O mundo material e seus inquilinos inertes e vivos já é uma realidade indiscutível. Passa a sentir uma necessidade de interagir com as pessoas. Torna-se extremamente competitiva e seu ego reivindica mais espaço para expandir seus domínios dentro daquela psique. Sua intenção é dar uma forma definitiva à personalidade do seu hospedeiro.
Sua missão agora é consolidar os limites, as barreiras definitivas que a identificará como um indivíduo diferente dos demais. Aprende a ser sociável e a imitar gestos comportamentais conscientemente. Passa a procurar os modelos de personalidade ou traços posturais com os quais mais se identifique. Ainda está confusa, mas agora tem uma meta. Estão lançadas as bases do sexto ano.
No sexto ano, ela irá aperfeiçoar seu modelo de interação com as pessoas e seu mundo. Está no limiar de ter seu próprio ego, consolidado, com as cores finais. Uma personalidade com preferências e medos particulares. Já tem plena noção da existência das coisas materiais, sabe que as deseja, embora ainda não saiba por quê. Sua sensibilidade de criança começa a se desfazer, e em seu lugar, as sensações, o aspecto emocional que lhes proporcionam os sentidos, assumirão o controle.
Ela tem uma real necessidade de experimentar o que os sentidos sugerem. Passa a observar o que tais sensações proporcionam ao seu corpo. É a busca da satisfação corporal ganhando espaço. Começa a sentir prazer ao ter contato com coisas e pessoas. Sente bem estar na presença de quem a agrada, e começa a sentir-se insegura com medo de perder essa fonte de satisfação. Está pronta para a etapa seguinte.
No sétimo ano, já tem personalidade, e a despeito da sua pouca idade, uma fisiologia ainda em desenvolvimento e um cérebro em fase estrutural, sua psique já é adulta. O que a diferencia de um adulto de fato são as alterações físicas que seu corpo ainda sofrerá e a experiência de vida que virá com o tempo. Já tem individualidade consciente e plena noção de que os outros, assim como ela, são capazes de pensar, ter ideias, planejar alguma coisa e até mentir. Enfim, já possui a condição plena de entender o que é malícia, embora seja ingênua por falta de experiência.
Se conta mentiras, agora o fará com total convicção e saberá os motivos. Já é capaz de planejar suas ações e têm plena noção da cronologia do tempo, isto é, passado, presente e futuro. Falta-lhe a maturidade, o conhecimento acumulado que virá com a idade, transformando-a num adulto ciente de suas convicções, capaz de opinar enfatizando sua personalidade e individualizando seus desejos.
O Verdadeiro papel dos Pais na Educação Infantil...
Mas, qual terá sido nosso papel na construção da personalidade dessa criança? Será que ela possui caracteres de nossa própria individualidade, resíduos de nossos vícios e manias, preferências e crenças, ou objetivos existenciais semelhantes? Será ela uma cópia psicológica mal feita de nós mesmos, ou um conglomerado dos muitos personagens que povoaram seu entorno enquanto crescia?
Após a natividade, uma criança precisa de abrigo e alimento, e logo mais, quando seus olhos se abrem e os ouvidos já são capazes de fazer uma relação com aquilo que os olhos vêem, vai demandar de muito esclarecimento e boa pedagogia. Começa então a formatação definitiva das memórias que usará como alicerce para a construção dos seus pensamentos e futura personalidade.
Se lhes mostramos um mundo irreal, ao crescer, terá como ideário esse mundo imaginário, recheado com suas fantasias, e isso, certamente, será motivo para a criação de inumeráveis conflitos. Terá construído um modelo mental sobre uma falsa realidade que em nada se compara ao mundo de verdade. É o fim das fantasias que criamos para encapsulá-la num mundo de mentiras, de contos de fadas.
Nesse meio tempo as crianças acreditavam que todo adulto, como dizem nos contos, estariam fadados à felicidade, e para que isso fosse possível, bastaria crescer. Imagine o choque ao constatarem por si mesmas que tudo não passou de uma grande mentira, uma cruel ilusão.
É um engano imaginar que os mitos são facilmente desfeitos na mente de uma criança, tome, por exemplo, os adultos de hoje, ainda repletos de superstições e inumeráveis crenças. As superstições são os antigos mitos; mitos que apesar de desfeitos pela ciência oficial e por uma dose de racionalidade, continuam a desempenhar seu papel no inconsciente profundo de cada indivíduo, alterando, criando, direcionando seus traços comportamentais e a maioria dos seus mais agudos medos. Não acredite: olhe para dentro de si mesmo e verá que ainda está tudo lá.
A ciência pode desfazer o mito, mas não pode fazer a mesma coisa com nossas memórias. Aquelas convicções, lá no fundo, continuarão a existir na forma de esperança, de um utópico mundo próspero situado numa indefinida linha do tempo, uma cláusula que também dá solidez a todas as crenças sectárias. Assim, não mudou muita coisa, apenas o nome. Antes era mito, agora é ideologia sacra.
Assim, é preciso olhar com cuidado que tipo de moeda, barganha ou argumentos nós usamos para condicionar, controlar e domesticar nossos filhos. Pode ser que o custo na forma de efeitos psicológicos patológicos seja mais elevado do que o seria, por exemplo, se lhes apresentássemos desde cedo apenas a mais pura e legítima realidade da vida, por mais bizarra e incongruente que, para nós, fosse.
Leia Também...
Editoria de Educação do Site de Dicas.
Veja mais detalhes sobre o autor ou autores nas notas abaixo.
Nota de Copyright ©
Proibida a reprodução para fins comerciais sem a autorização expressa do autor ou site.
[1]
Ester Cartago - estercartago@gmail.com
É Psico-orientadora especializada em educação Integral e Consciencial, Antropóloga, pesquisadora de Fobias Sociais e também escritora. Torna-se agora mais uma colaboradora fixa do nosso site.
A autora não possui Website, Blog ou página pessoal em nenhuma Rede Social.
Mais artigos da autora em: https://www.mundosimples.com.br