Autor: Alberto Grimm[1]
Atualizado: 21 de Maio de 2022
Naquele dia, um pouco antes do amanhecer artificial, ele percebeu que havia alguma coisa estranha; estranha por não ser capaz de compreender sozinho. Mas, tinha certeza de que um algo mais estava presente no ambiente. Abriu a janela virtual do seu quarto, e ao olhar para o lado de fora viu que a definição da imagem da rua não parecia de alta resolução. As cores se mostravam desbotadas, esmaecidas, difusas, desfocadas e instáveis, e em alguns pontos, quase opacas e sem o tradicional efeito de profundidade. Fechou a janela virtual e virtualmente sentou em sua cama tentando pensar um pouco.
Mas, como não conseguia pensar sozinho no modo off-line, resolveu acessar o banco de memórias remoto para ver se lá já existia alguma ideia pronta que servisse de base para o pensamento que sozinho, naquele momento, não era capaz de elaborar. Não se tratava de uma pesquisa simples, pois sequer sabia o que procurar. Mas, aquele ato o ajudou a comprovar que, de fato, algo estranho estava acontecendo. Constatou isso ao descobrir que o banco de memórias, naquele momento, se mostrava inacessível.
Por algum motivo desconhecido, o servidor de cérebros artificiais estava desconectado. Ficou desesperado, pois acabara de perceber o quanto era dependente do cérebro virtual que ficava hospedado na Central de Pensamentos, e de onde extraía todas suas ideias, comportamentos, desejos, opiniões e modo de viver, uma vez que era incapaz de pensar por conta própria. Naquele momento, descobrira que sua vida psicológica e emocional dependia inteiramente de um servidor, um mecanismo remoto, uma mente virtual coletiva, cuja localização ele simplesmente desconhecia.
Olhou à sua volta vasculhando o ambiente virtual onde se encontrava e percebeu que o cenário construído de acordo com suas preferências começara e se desfazer, dando espaço para que uma cena padrão ocupasse seu lugar. Aquilo era um sinal claro de que alguma anomalia estava acontecendo no Centro de Controle de Mentes. Viu então que o amanhecer artificial mostrava-se instável, com a aparência de uma tarde nebulosa, um indício incontestável de avarias graves no sistema, ou mundo virtual, do qual era inquilino, do qual era um personagem.
Acomodou-se melhor em sua cama virtual tentando pensar sozinho em alguma coisa. Mas, aquela era uma tarefa impossível, uma vez que jamais fizera isso antes, não sabia nem por onde começar; sequer sabia o que era pensar, muito menos escolher alguma coisa de acordo com sua vontade. Naquele mundo, o comum era pegar uma ideia, postura comportamental, desejo, preferência, opinião ou pensamento já pronto, afinal de contas existiam inúmeras opções disponíveis para uso. Era até possível escolher por categoria, crença, status social, ou entre os mais comentados e recomendados pelos formadores de opiniões, gurus e conselheiros do mundo virtual, antigos ou novos, de acordo com as velhas ou mais recentes tendências.
Na escola daquele mundo virtual, todos recebiam links mentais, que para os usuários se assemelhavam a ideias naturais, sugerindo posturas e modos de agir que poderiam usar nas diversas situações do dia a dia, e desse modo, bastava copiar e colar. Não era preciso aprender, memorizar ou criar nada novo. Sempre fora desse modo, desde que todos foram inoculados com os nano implantes cerebrais, uma tecnologia avançada que, desde o nascimento, simulava um modelo de mundo virtual para cada hospedeiro. E dentro daqueles mundos virtuais poderiam viver 24 horas por dia. Eram mundos e modo de vida definidos de acordo com o status social, crenças e função de cada indivíduo, e em alguns casos especiais, para os mais abastados, influentes e alinhados com o sistema, construídos sob demanda.
Lembrou de um dia, quando a bateria que mantinha o mundo virtual ligado deu pane. Felizmente fora um problema passageiro, não durou mais que um segundo. Entretanto, a visão da suposta realidade que tivera fora horrível. Viu-se de repente num imenso recinto fechado e sem janelas, dividido em incontáveis compartimentos em forma de casulos, que alojavam indivíduos impassíveis, inertes, sentados olhando para o vazio, a exemplo de Zumbis em estado Cataléptico. Felizmente o sistema voltou a funcionar quase num piscar de olhos, e tudo aparentemente não passara de um breve sonho, ou pesadelo, considerando os aspectos nada agradáveis da experiência.
Mas, agora o servidor do mundo virtual onde vivia, do qual era um inquilino ou personagem, estava com problemas operacionais, e um novo padrão de mundo estava se sobrepondo ao modelo no qual já se habituara a viver. Se no mundo tradicional sempre acordava com um dia ensolarado, de uma natureza viçosa, exuberante, com um fundo canoro de pássaros exóticos, possível de contemplar de sua janela, nessa versão alternativa, o que se via era uma tarde melancólica com ventos frios, de um tempo fechado, silencioso e cinzento. Entretanto, naquele momento, a questão mais relevante era o fato, agora comprovado, de que não era capaz de pensar de maneira autônoma, razão pela qual, não tinha a menor ideia de como proceder, ou o que fazer, diante de uma situação crítica, como aquela.
Foi quando escutou uma voz conhecida, era do gerenciador do sistema operacional, também conhecido como Avatar, Mentor, Guru ou Guia Espiritual, que informava: “Atenção todos os residentes, o sistema neste momento apresenta instabilidade temporária, e enquanto realizamos os ajustes necessários, todos viverão durante algum tempo, num mundo virtual alternativo. Logo, um Amparador, Orientador ou Guia Virtual, se apresentará para orientá-los dos procedimentos neste novo e temporário mundo. Esperamos voltar ao normal em alguns minutos...”
O seu quarto com janela para um jardim florido à beira mar, de uma permanente e perfumada brisa, logo fora substituído por uma paisagem desolada, melancólica e apática, de um entardecer sem expressão, cinzento e com pouca luz, um indício de que o sistema procurava com isso economizar energia. Correu para a cozinha virtual e lá encontrou uma simples mesa com torradas de pão transgênico acompanhadas por chá frio adoçado com açúcar refinado de agave também transgênico. Era um cenário deplorável, muito distante da exuberante variedade de outros dias, onde aquele espaço se tornava exíguo para acomodar tamanha variedade de alimentos orgânicos frescos.
Sua Mente virtual de última geração, com banda ultralarga de recepção 4500G, fora substituída por um modelo simples, com baixa resolução gráfica e conexão “Beta G” semidiscada sem filtro contra ruídos. O padrão para demonstrar desespero ele ainda lembrava claramente, por isso não precisou acessar o banco de pensamentos para simular tal sentimento. Se ao menos soubesse pensar, poderia encontrar uma solução alternativa, algo menos traumático e capaz de ajudar naquele processo de autossuperação ou readaptação. Mas, seu cérebro se recusava a fazer isso, estava calcificado, atrofiado demais, e por falta de uso, fossilizado, motivo pelo qual, de modo irreversível, perdera por completo o atributo da lucidez voluntária, assim como todo e qualquer resíduo de potencial cognitivo.
Gritou pela sua mãe virtual, mas não obteve resposta. Dirigiu-se ao seu quarto e a porta estava trancada por dentro. Bateu na porta virtual, e sequer o som do impacto das batidas na madeira conseguia escutar.
Escreveu num pedaço de papel virtual a frase: “Mãe, você está ai?”, e colocou por baixo da porta. Mas, como a conexão estava lenta a espera parecia uma eternidade. Por fim ela respondeu; foi uma resposta automática, pré-gravada, um simples e lacônico “Positivo!”
Diante de tamanha frieza e falta de emoção, ele concluiu angustiado: “Se nem os aplicativos para simular emoções estão ativos, a coisa parece realmente muito séria...”
O que fazer diante de tal situação? E se o sistema perdesse a identidade virtual de cada um dos conectados? Nesse caso, ele deixaria de existir, perderia seus amigos virtuais, seu emprego virtual, sua vida pessoal virtual, sua família. Percebeu então que já se sentia diferente. Suas lembranças recentes estavam se diluindo, e sequer lembrava mais do aspecto dos demais cômodos de sua casa.
Isso, certamente, estava acontecendo porque, devido ao problema, o sistema fora obrigado a trocar sua personalidade multidimensional original, cujo status social lhe conferia o direito de possuir uma resolução gráfica hiperrealista do ambiente, sensações reais, lembranças lúcidas com som polifônico e sensibilidade de última geração, por uma versão mais simples, básica, rudimentar; uma reduzida opção “Default”, com apenas 4 cores, sem experiência sensorial e limitada às lembranças quase instintivas.
Era um modelo alternativo, dotado de uma mente primária, com imagens estáticas em baixa resolução, cuja proposta existencial se baseava em princípios religiosos primitivos, onde a prática de orações, promessas a troco de penitências, rituais ou oferendas, eram direcionadas a personagens conhecidos como santos ou guias, sempre que um problema existencial ou material se fizesse presente.
Então tudo apagou, e apenas uma música ambiente quase inaudível era possível escutar, e no fundo escuro do seu quarto virtual, podia enxergar um pequeno ponto verde piscando alternadamente. E esta foi a última coisa que viu antes que surgisse uma mensagem luminosa no mesmo ponto, onde era possível ler: “Aguarde, sistema operacional do mundo virtual sendo reinicializado...”
É o pouco do que ainda consegue lembrar, embora de maneira difusa, quase sem resíduos na memória, incapacitando-o a diferenciar se aquilo realmente acontecera ou se fora apenas um delírio virtual, uma espécie de engasgo na transmissão de dados, ou simplesmente um sonho, como era popularmente conhecido aquele fenômeno. Entretanto, estranho mesmo era aquela forte sensação de que esquecera alguma coisa, embora, ao acordar, tudo estivesse aparentemente normal.
E lá estava outra vez em seu quarto habitual, com janela de frente para o mar, brisa permanente e perfumada, adornada com o cântico dos pássaros e o bater permanente e ritmado das ondas.
Neste momento, sua mãe virtual, parecendo confusa, entra no quarto e comenta: “Coisa mais estranha, mesmo sendo incapaz de saber se estava ou não dormindo, estou com a clara sensação de que acabo de ter um sonho, ou pesadelo, como se há pouco tempo atrás, algo esquisito tivesse acontecido, embora não seja capaz de compreender, lembrar com precisão, ou mesmo saber se foi algo real...”/b>
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Alberto Grimm - albertogrimm@gmail.com
É Antropólogo, Publicitário e Escritor especializado em educação Holística e Consciencial. Os Contos Reflexivos são fábulas modernas, das quais sempre podemos extrair formidáveis lições de vida, que muito favorecem à reflexão.
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