Autor: Alberto Grimm[1]
Atualizado: 21 de Maio de 2022
A casa era imensa e estava localizada em meio a um pequeno bosque às margens de um lago profundo e de águas calmas, que embora límpidas, eram escuras como breu. Tinha uma fama e tanto, de mal assombrada. Ninguém conseguia passar uma noite lá dentro. Morar ali, nem pensar. Possuía muitos quartos em seus três andares construídos sobre uma sólida laje natural de pedra negra, uma espécie de basalto raro, quase à beira de um penhasco, digno de amedrontar os mais intrépidos alpinistas ou demais pré-suicidas praticantes de desafios radicais.
Passados dezenas de anos, ainda permanecia majestosa e firme, apesar das expressivas marcas da idade visíveis em suas paredes. Seus donos eram prósperos, mas o tempo implacável lhes tirara tudo. Agora, embora não mais existissem, ao menos fisicamente, lá estava sua robusta morada, feita para durar mais que todos da sua linha de sucessão. Pouco se sabia sobre os acontecimentos que culminaram com o início das assombrações no local, mas a história era clara: os fantasmas do lugar não eram nem um pouco amistosos com os visitantes.
Os últimos enxotados fora um grupo de religiosos, que assediados por um ímpeto de justiceiros divinos, resolveram fazer um exorcismo com a ecumênica missão de “Limpar a Casa”. Naquele grupo, autodenominado como uma espécie de Liga da Justiça Santa dos Cavaleiros do Bem contra as forças do mal, ou simplesmente Mensageiros Divinos, todas as religiões enviaram seus mais competentes, ilustres e sábios ministros.
Conta-se que logo na entrada, um deles ficou completamente surdo com o sopro que um dos fantasmas deu nos seus ouvidos, nos dois, ao mesmo tempo. Ficou desorientado por um tempo, sem saber onde estava, sem lembrar do próprio nome e trocando o norte pelo sul. Depois, embora recobrasse a razão, permaneceu por um bom tempo sem a audição.
Sorte sua que, por ser erudito qualificado em muitas competências, conhecia a linguagem dos sinais, motivo pelo qual, foi capaz de continuar se comunicando sem problemas com os demais membros do grupo. Depois chegou a imaginar que fora beneficiado pela brincadeira da assombração, uma vez que os sons assustadores dos fantasmas arruaceiros não mais o perturbariam naquela noite. Infelizmente, para os demais presentes, a coisa não era tão simples assim. O fato é que, todos foram expulsos da casa poucas horas depois, mas não sem traumas psicológicos preocupantes, e alguns irreversíveis.
No entanto, o que mais impressionara o grupo foi que, logo após o início do exorcismo, quando pronunciaram as primeiras palavras, dos mais sagrados mantras e hinos divinos, inclusive as evocações veladas, os fantasmas completaram em voz alta e solene toda a ladainha restante, inclusive reproduzindo os cânticos dos rituais sacros mais poderosos. Ainda ensinaram aos religiosos algumas técnicas secretas que todos, apesar de sua longa experiência ecumênica, desconheciam.
Enquanto isso, ao fundo era possível escutar um coro melodioso que recitava em tom canônico, a exemplo dos cânticos gregorianos, todos os salmos bíblicos, ora em Latim, ora em Aramaico, provando sua versatilidade e fluência linguística. Em resumo, todos saíram da casa moralmente arrasados e psicologicamente desorientados, duvidando dos seus livros sagrados e conceitos doutrinários, questionando de maneira preocupante a própria fé.
Mas, sem dúvida, o que mais abalou a autoestima do grupo foram as palavras finais daquele que parecia ser o fantasma chefe ou mentor do comitê de recepção extrafísico. Dissera em tom solene: “Voltem sempre, e assim podemos passar longas horas discutindo sobre a exegese de todos os livros sagrados. Gostamos de realizar seminários para falar de coisas religiosas, doutrinas secretas e assuntos dessa natureza. Nossas reuniões são sempre as terças e quintas, meia noite em ponto. Temos também uma seção extra a cada sexta feira 13. Vocês são, a partir de hoje, nossos eternos convidados... não é verdade pessoal?” Um gemido horripilante, algo como um “Amémmm...” em forma de coro melódico que ecoou por toda casa de maneira sobrenatural e lembrava a entonação dos cantos ritualísticos monásticos, parecia ser a concordância do restante da comunidade etérea.
Detalhes à parte, uma nova família que ora estava chegando ao local, parecia não se importar com aquelas lendas e relatos assombrosos. Observaram a imponente fachada da enorme mansão, e aquela que parecia ser a matriarca do grupo, comentou suspirando: “Pelo menos espaço, a partir de agora, teremos de sobra... e o mais importante, sem pessoas esquisitas por perto para nos importunar...”
Entre eles, uma criança, que segurava na mão direita uma revista em quadrinhos, cujo título era, “Histórias Assombrosas”, voltou-se para a senhora que fizera o comentário, e perguntou: “Mãe, quero ver os fantasmas da casa... Será que posso? A senhora deixa?”
“Deixa de coisa menino”, ressaltou a jovem senhora em tom resignado, “fantasmas é aquele tipo de coisa que faz sentido apenas para as pessoas. Eles existem exclusivamente para interagir com os seres humanos. Eles aparecem e assustam indivíduos do gênero Homo Sapiens. Somos Ratos geneticamente modificados, e embora caminhando sobre duas pernas, dotados de inteligência, falando como gente e com aparência de gente, ainda somos Ratos, e fantasmas, pode acreditar, não levam o ato de assustar Ratos a sério...”
Matriarca de uma família de Ratos Geneticamente Modificados, inoculados que foram com o DNA humano, cobaias das pesquisas científicas que ora proporcionava aos homens uma sobrevida milenar, tinham também aparência humana, apesar dos sessenta centímetros de estatura máxima. Graças a essa evolução forçada, agora pensavam e se expressavam como gente, embora de maneira mais sensata e justa que seus criadores. Possuíam ainda polegar opositor, mãos e pés com cinco dedos, caminhavam eretos, e conviviam com os humanos sem problemas, desde que permanecessem confinados em guetos bem demarcados e severamente vigiados.
E a criança, meio desolada e olhando para a capa de sua revista em quadrinhos, deu de ombros e suspirou baixando a cabeça. E pegando a mochilinha onde guardava o resto dos seus pertences, subiu lentamente os largos degraus que davam acesso à porta principal do casarão.
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Alberto Grimm - albertogrimm@gmail.com
É Antropólogo, Publicitário e Escritor especializado em educação Holística e Consciencial. Os Contos Reflexivos são fábulas modernas, das quais sempre podemos extrair formidáveis lições de vida, que muito favorecem à reflexão.
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