Autor: Alberto Grimm[1]
Publicado: 15 de Agosto de 2024
Definitivamente, a sensação não era nada boa. Fazia muito frio, e ele, sem compreender muito bem o que estava acontecendo, caminhava por uma estreita trilha de terra em meio a uma densa mata fechada de onde sequer podia enxergar a luz do sol, ou mesmo um pedacinho de céu claro, se é que naquele lugar existiam tais coisas.
Estava meio confuso; na verdade, meio não, completamente. Não era capaz de pensar de maneira ordenada. Sua mente não conseguia se fixar em ponto algum e suas lembranças mais pareciam um amontoado de eventos sem uma sincronia ou sequência lógica, tudo pelo avesso, surreal. Em resumo, dentro de sua cabeça, por mais que tentasse racionalizar, nada parecia fazer sentido.
Tentou lembrar de como chegara até aquele lugar e nada, nadinha, nem adiantava insistir. Como seria possível alguém estar em algum lugar sem ter uma clara lembrança do seu ponto de partida ou origem, ou mesmo de como ali chegara? Poderia ser aquela sensação um indício comum entre as almas desgarradas, como, por exemplo, de alguém já morto? Percorreu bisonhamente a parte visível do seu corpo com os olhos em busca de respostas para aquele dilema, e só então percebeu que vestia um agasalho para frio. Motivo pelo qual, deduziu que havia se preparado para estar ali. A questão era, ali, onde?
Olhou para trás, e viu apenas uma longa trilha, estreita, sinuosa, que se perdia em meio ao mato denso, uma visão semelhante a aquela que tinha à sua frente, assim como à sua volta. Dos lados, apenas árvores de todas as cores e alturas era possível se ver, e tudo isso realçado por um silêncio sepulcral que o fizera concluir, ou que podia estar com problemas de audição, ou que ali, a exemplo da presença de luz, também não existiam sons.
Foi quando percebeu que sequer era capaz de lembrar-se do próprio nome; do lugar onde morava, nem pensar. Era como se estivesse vazio, oco, desprovido de cérebro e das suas respectivas memórias. Sentiu um aperto à boca do estômago e seu coração acelerou deixando-o com uma sensação momentânea de falta de ar e princípio de pânico.
O silêncio absoluto foi repentinamente quebrado por um barulho que se assemelhava a vozes; muitas vozes, estranhas, um murmúrio denso, sinistro, cuja intensidade oscilava de acordo com a direção do vento; um vozerio desordenado e impossível de decifrar. A impressão era que um grupo de pessoas aproximava-se rapidamente do ponto onde se encontrava, e depois, com a mesma velocidade, recuava.
Ficou atônito, indeciso, enquanto seus olhos em vão procuravam por todos os lados aqueles misteriosos protagonistas, se é que realmente existiam. Uma sensação de pavor o invadiu; sentiu-se encurralado, não sabia se avançava ou recuava.
Aflito e desorientado, logo pensou em correr. No entanto, estava com um problema; na verdade um grande problema, uma vez que, diante daquelas circunstâncias, para ele não era possível determinar de onde vinha aquele murmúrio. Desse modo, mover-se em qualquer das duas direções, avançando ou recuando, as únicas opções de fuga disponíveis, diante de tamanha limitação sensorial, aparentemente não seria uma manobra racional, muito menos sensata.
Mas, a essa altura dos acontecimentos, onde nada parece fazer sentido, o que seria sensato, pensou. Então cerrou os punhos, e num ímpeto de coragem, decidiu correr para frente sem olhar para trás. Entretanto, sua aflição só aumentou, ao perceber que o burburinho de vozes parecia acompanhar seus apressados passos, se aproximando cada vez mais. E em meio ao incompreensível falatório que parecia seguir seus passos, escutou alguém pronunciar um nome, que até poderia ser o seu, caso soubesse qual era.
E aquela voz estranha, arrastada, sonolenta, grave, e de um timbre metálico entrecortado por picos de chiados difusos de cordas vocais ainda dormentes, sussurou, quase aos seus ouvidos: “Jon, não precisa se apressar, com certeza, este é o lugar certo. Aqui podemos encontrar aquilo que todos nós procuramos...”
Por isso mesmo quase morre de susto quando alguém segurou com firmeza no seu ombro direito, e após uma brusca sacudida, falou, desta vez, com grande euforia: “Vamos, está na hora...” O grito que saiu de sua garganta, resultado do imenso pavor que sentiu, era de fato peculiar e exótico. Não foi um grito que despontou de imediato e de maneira natural, e sim uma espécie de grito progressivo, cuja intensidade foi aumentando de volume aos poucos, como se obedecesse ao girar do botão de volume de um rádio cuja engrenagem estivesse emperrada.
Acordou tentando desesperadamente se segurar em alguma coisa, como se estivesse caindo de uma cama, da qual de repente, lhe tirassem o lastro. Segurou em um pé; isso mesmo, um pé, descalço, ainda úmido por conta do relento da noite fria, de alguém que dormia ao seu lado, juntamente com mais uma centena de outras pessoas, naquilo que, pelo menos no aspecto, parecia ser uma imensa Fila de Espera.
A princípio, ainda estava desorientado, sem saber onde estava; sem ter uma clara noção de onde ficava o norte ou o sul. Parecia ter perdido o juízo, e sua mente mais se assemelhava a um sistema operacional de computador contaminado com um vírus que o tornava demasiado lento. Mas, quando a mesma voz que o acordara tornou a falar, sua razão começou a voltar para casa.
“Levanta, que as portas já vão ser abertas...”, balbuciou aquele misterioso personagem, que aos poucos ia se materializando e tomando uma forma humana diante dos seus olhos ainda sonolentos, embaçados, ofuscados e doloridos pela repentina presença de luz.
Foi quando finalmente lembrou que estava, juntamente com uma centena de outras pessoas, amigos e estranhos, numa imensa fila de compradores compulsivos, à espera de um grande lançamento: "Um novo e revolucionário produto, uma singularidade eletrônica que viciados fanáticos e alienados em consumo como ele, faziam questão de ter em primeira mão..."
Tratava-se de um novo aparelho eletrônico, um Celular, cujo diferencial era não possuir botões ou qualquer outra forma de interação com as mãos. Funcionava por comando de voz, com a promessa de que futuramente viria a ser ativado por meio de telepatia, e que apenas seu dono seria capaz de operá-lo.
Nada que o tornasse superior aos modelos anteriores, não fosse o exclusivo recurso de mostrar aos seus usuários, em tempo real, através de dezenas de exclusivos gráficos coloridos e animados, as nuances da Temperatura do Centro da Terra, sem contar que, o mesmo modelo, ainda oferecia a possibilidade da instalação de um revolucionário Plug-In, este capaz de mostrar, também em tempo real, as variaçoes de temperatura da superfície do Planeta Marte.
Sem compreender muito bem por que precisava daquele aparelho, o fato é que ele, juntamente com um grupo de amigos, estava naquela fila, sabe-se lá há quantas horas, disposto a garantir o seu precioso mimo.
Então, subitamente, como se seu cérebro iniciasse um processo de autolimpeza, onde coisas sem explicações não teriam mais espaço para ficar, questionou por que precisaria tomar conhecimento da temperatura do núcleo da Terra, ou da superfície de Marte, em tempo real, 24 horas por dia.
Pensando racionalmente, Que utilidade prática teria aquilo para si? Foi quando percebeu que, pela primeira vez em sua vida, estava pensando, questionando alguma coisa. Lembrou que isso, talvez fosse um reflexo ou efeito daquele sonho “diferente”, surreal, exótico, bizarro, mas fabuloso, que acabara de ter.
E, no mesmo fluxo, muitos outros pensamentos questionadores, estranhos para ele, uma vez que desde criança se habituara a simplesmente seguir, sem refletir, a onda da vez, sem o seu consentimento, se apossaram de sua mente. Era como se fossem os antigos moradores, há muito desalojados, mas que agora, patrocinados por uma nova e estranha causa, reivindicavam sua antiga morada.
A despeito de ser uma nova e inesperada experiência, longe estava de ser uma sensação ruim. Antes disso, era estranhamente motivadora, libertadora. Lembrou das campanhas promocionais anteriores, que o arrebatara, levando-o a consumir sem pensar, sem avaliar se de fato eram necessidades ou simples compulsões sem causa ou utilidade aparente.
Lembrou dos tantos aparelhos, todos ainda em perfeito estado de funcionamento, totalmente capazes de atender à todas suas necessidades, jogados nos fundos das gavetas, e que eram substituídos quase como uma obrigação, ritual ou penitência religiosa, a cada nova campanha, apesar de não haver motivo coerente, lógico, racional, para isso. Agora, percebia este fato, com extraordinária clareza.
Ficou assustado com aquele percebimento, e pela primeira vez, sentiu que sempre fora uma marionete sob jugo da vontade de terceiros. Sentiu um misto de revolta e um tanto de liberdade, pois sabia que, a partir daquele ponto, não mais aceitaria desempenhar aquele ingrato papel de “boneco movido à corda alheia.”
A sensação era de que, depois de um longo e perturbador torpor cerebral, uma espécie de embotamento ou processo de hibernação mental por falta de uso da razão, ao qual, ele e todos outros haviam sido involuntariamente submetidos desde a infância, finalmente, despertara.
Achou graça ao observar seus amigos, ali ao seu redor, naquela imensa Fila de Espera, ansiosos, eufóricos, onde passaram a madrugada, a troco de nada, discutindo tolices como os benefícios de possuir um celular que, além de fazer aquilo que todos os demais já faziam, era capaz de mostrar, em tempo real, a temperatura do núcleo da Terra ou da superfície do Planeta Marte.
Saindo dali, depois se reuniriam, como das outras vezes, cada um tentando configurar seu aparelho com um padrão diferenciado, embora fossem todos exatamente iguais. Depois iriam para suas casas, e lá permaneceriam diligentes, em estado de Hibernação ou Espera, a exemplo de Zumbis amestrados controlados remotamente, até a próxima campanha; o próximo comando ou ordem de como deveriam se comportar.
E depois, pensou: quem poderia garantir que aqueles números atestavam, de fato, a temperatura do núcleo do Planeta Terra ou superfície Marciana, afinal de contas, quem iria descer, ou subir até lá, com um termômetro para conferir?
Realmente, algo absolutamente novo em sua vida estava acontecendo; estava pensando por conta própria. Experimentava uma liberdade estranha; mas não por ser uma sensação esquisita, e sim porque sentia uma segurança e autoconfiança nunca antes vivenciada.
E sem dizer nada, já que nenhum dos demais teria ouvidos para seus argumentos ou ponderações, discretamente se afastou sem ser notado, sem explicar nada a ninguém. Estava, pela primeira vez, em toda sua existência, completamente lúcido e consciente de uma ação sua.
[1]
Alberto Grimm - albertogrimm@gmail.com
É Antropólogo, Publicitário e Escritor especializado em educação Iintegral. Os Contos Curiosos são fábulas modernas, das quais sempre podemos extrair formidáveis lições de vida, que muito favorecem à reflexão.
O autor não possui Website, Blog ou página pessoal em nenhuma Rede Social.
Confira outras publicações do autor em:
Mundo Simples - Contos Curiosos
Nota de Copyright ©
É Proibida a reprodução total ou parcial deste conteúdo para fins Pessoais ou Comerciais sem a autorização expressa do Autor ou Site.