Autor: Alberto Grimm[1]
Publicado: 15 de Agosto de 2024
Depois de milhares de anos usando minimamente o cérebro, os habitantes daquela civilização, finalmente passaram por uma importante transformação. Na verdade foi uma mutação, cujos efeitos, de maneira dramática, era claramente perceptível em toda sociedade. As estatísticas oficiais ou informações que circulavam em segredo apenas entre os membros graduados do Centro de Comando do Poder Central, revelavam à luz da ciência, o resultado de um programa pedagógico, de fato uma reformatação ou reprogramação mental, iniciado dezenas de anos antes.
Fora um trabalho bem organizado, discreto, silencioso, paciente, executado a muitas mãos, seguindo à risca diretrizes bem planejadas, claramente idealizadas, e cujos frutos, finalmente, já estavam maduros e à disposição dos seus cultivadores.
Agora era um fato consumado, comprovado. E salvo raríssimas exceções, os indivíduos não mais conseguiam pensar e agir por conta própria. Mas, o mais importante de tudo isso era que seus cérebros atrofiados agora eram os naturais, aqueles concebidos em seus hospedeiros desde o útero matriarcal, e não mais o lote defeituoso da geração anterior, uma safra cuja massa encefálica fora intencionalmente modificada geneticamente para encolher. Naquela ocasião, o processo de encolhimento fora fundamental para o advento da fossilização, eliminação ou supressão de qualquer potencial cognitivo.
E se aquele primeiro projeto não dera certo, isso ocorrerra simplesmente porque uma geração inteira de imbecis absolutos fora o desastroso resultado do experimento. Eram indivíduos tão estúpidos, que se tornaram dependentes físicos, um verdadeiro problema social; um fardo dos mais pesados para o Governo Totalitário, uma vez que sequer sabiam diferenciar o calor do frio.
E muitas gerações foram necessárias para a erradicação completa daquele lote defeituoso, assim como dos seus descendentes, uma vez que quando o assunto era a procriação ou multiplicação da espécie, para isso, eles se mostraram mais que capacitados.
Mas agora, naquele momento, deixando de lado o desagradável passado, era preciso festejar o absoluto sucesso desta nova abordagem. E assim, depois de degustar uma iguaria exótica salpicada com lascas de trufas raras, o exaltado coordenador do Centro de Genética Avançada, compartilhou seu sentimento aos demais membros do partido totalitário ali presentes.
“Senhores, todos sabemos que nossa proposta inicial era a concepção de Idiotas Funcionais, isto é, indivíduos facilmente condicionáveis e amestráveis, que ao menos tivessem capacidade mental para seguir instruções, de modo a nos servir com sua mão de obra. Sabemos do fiasco do projeto, onde todo lote daquela geração só sabia fazer uma coisa: procriar. Neste aspecto, se assemelhavam aos ratos, cujo DNA foi misturado ao deles com a intenção de torná-los mais adaptáveis aos ambientes inóspitos dos dias atuais, uma condição ambiental tóxica e impossível de acolher qualquer tipo de vida, que aliás, fora criada por eles mesmos... Mas, agora só nos resta comemorar a volta por cima que foi dada, com o sucesso deste novo projeto...”
Fato consumado, aquele primeiro projeto de modificação genética feito de modo experimental em um lote de indivíduos da espécie humana, inoculados com o DNA dos ratos, resultara em um completo fracasso. Ocorre que, na ânsia de se criar um protótipo humano com cérebro atrofiado, mas ao mesmo tempo dotado de uma fisiologia adaptável à ambientes urbanos degradados, acabaram por conceber um indivíduo atrofiado e sem cérebro.
Eram tão estúpidos, que mesmo depois de adultos, sequer sabiam se comunicar entre si com clareza. E o pior de tudo, tornaram-se viciados em redes sociais, e não sabiam fazer outra coisa senão seguir cegamente qualquer tipo de tendência ou movimento social inútil, replicar boatos de influenciadores digitais com possíveis transtornos mentais, acompanhar dia e noite os dramas das novelas da moda, tramas de Realities Shows e as vidas privadas de celebridades com perturbações mentais, e enquanto nas horas de folga criavam guerras motivadas por crenças religiosas e ideologias pessoais, nos intervalos adotavam outras posturas bizarras à altura de sua estupidez.
Mas, a grande tragéda é que sequer sabiam escrever ou ler; muito menos compreendiam de maneira lúcida as instruções ou ordens que lhes eram passadas, por mais simples que fossem.
Por isso, de nada serviriam aos propósitos do Partido Totalitário Central, uma vez que o projeto original contemplava a concepção de uma geração de homens cativos, com uma cota mínima de massa encefálica, mas ainda assim condicionáveis, controláveis, facilmente domesticáveis.
E naqueles tristes momentos, para imensa frustração do Colegiado Dominante, o que se viu foi um lote de homens incondicionáveis e incontroláveis, verdadeiros trogloditas, e isso simplesmente porque não havia espaço em seus cérebros para alojar nenhum resíduo, por mínimo que fosse, de conteúdo cognitivo.
E infelizmente o motivo só foi identificado muito tempo depois, quando o experimento não mais poderia ser revertido. Aconteceu que, embora a porção “Rato” inoculada ao DNA do homem tivesse o propósito apenas de fortalecer a fisiologia humana diante da degradante condição ambiental do planeta, o fato é que o cérebro do animal irracional, o roedor oriundo dos grandes lixões, acabou por ganhar um destaque acima do esperado na constituição psicológica do seu novo hospedeiro.
Eis o motivo pelo qual aquele audacioso plano fora temporariamente deixado lado. Mas, agora a história era outra, e finalmente, era possível comemorar o êxito em criar um homem de acordo com aquele projeto inicialmente idealizado. No entanto, foi necessário esperar várias gerações, até porque, como diziam os coordenadores do programa: “O ideal do processo lento, é que ninguém irá perceber as mudanças, a lenta, progressiva e irreversível lavagem cerebral...” E foi o que aconteceu.
Para isso, em primeiro lugar, o estado criou condições favoráveis para que o indivíduo perdesse o seu senso crítico, e fez isso ao criar as instituições acadêmicas onde os alunos automaticamente passavam de ano de acordo com a idade ou tempo de escola, e não mais de acordo com o grau de aprendizado ou a qualidade do seu repertório cognitivo.
“Não precisam aprender a ler ou escrever, basta que estejam aptos a seguir nossas ordens sem questionar...”, comentavam os ministros da educação quando o projeto era apenas embrionário.
E em pouco tempo, à medida que as novas gerações foram chegando, ninguém mais sabia ler ou escrever, e todos achavam aquilo natural. Depois vieram os programas de televisão com suas Novelas, Realities Shows Ideológicos e dramas do cotidiano; tramas especialmente produzidas pelo estado para criar em todos uma mentalidade dirigida, um pensamento condicionado recheado por padrões comportamentais à base de castigos ou recompensas. Neste quesito, usaram como inspiração as técnicas já largamente usadas no processo de adestramento dos animais domésticos.
E agora, o resultado finalmente podia ser comemorado. Nenhum cidadão em atividade social era capaz de pensar sozinho, agir por conta própria, ou fazer qualquer coisa sem uma orientação ou comando prévio. E o mais importante, haviam perdido por completo o senso de questionamento. Assim, os absurdos e comportamentos sociais bizarros, mesmo os mais extravagantes e insensatos hábitos, dentro de cada mesologia, agora eram considerados processos naturais e politicamente corretos.
Obedeciam sem questionar, trabalhavam para servir ao seu mestre, e nada reivindicavam para si ou para os outros. Sem contar que ainda foram treinados para agradecer aos bondosos “deuses” pelo fato de estarem vivos, embora se assemelhassem a Zumbis anímicos amestráveis, sem objetivos pessoais ou demandas existencias de qualquer natureza. E tudo aquilo constituía o cenário perfeito para as metas de qualquer governo totalitário.
E durante as comemorações daquela conquista, na festa de confraternização do grande colegiado, um dos ministros mais influentes do poder central, resolveu apresentar uma nova proposta aos demais. Seria a criação de cotas de indivíduos com cérebro, mas apenas uma inexpressiva minoria, isso para que pudessem servir de cuidadores para os filhos dos senhores da cúpula dominante.
Entretanto, ele apresentou argumentos que pareciam bastante sólidos para justificar aquela ideia, de modo a dar um embasamento científico e antropológico à sua ousada e pioneira proposta.
“Senhores, depois de pesquisas exaustivas, eu e meu comitê de assuntos reservados, descobrimos que na antiguidade, segundo relatos históricos e antropológicos bem conhecidos, uma classe denominada de Senhores de Engenho, um título de nobreza similar ao nosso, acomodava entre seus escravos um pequeno lote de servos que faziam o papel de cuidadores ou pais substitutos para seus herdeiros...", fez uma pausa para sorver um generoso gole de vinho de uma safra pré-histórica, e depois prosseguiu.
No entanto, era apenas um pequeno e insignificante grupo; uma espécie de servos de Elite. Estes foram acolhidos dentro das Casas-Grandes, uma versão primitiva dos nossos palácios atuais, recebendo até um tratamento diferenciado quando comparados aos demais vassalos, que nos campos degradados, trabalhavam como animais brutos, 18 horas por dia, estes sim, sem direito a nenhum tipo de regalia ou benefícios...”
E eis que outro importante membro do partido ali presente, após ouvir tudo aquilo atentamente, comenta contemplativo: “Meu caro ministro, muito promissora, apropriada e oportuna esta sua feliz colocação. Sem contar que tal advento nos proporcionaria um serviço escravo mais qualificado, à altura do nosso Status e condição Social. E agora, o ponto mais importante: teríamos mais tempo livre para usufruir com maior intensidade do nosso precioso e divino lazer, assim como das nossas prazerosas reuniões informais regadas a vinhos e queijos raros, sem esquecer as deliciosas trufas exóticas...”
E assim surgiu a classe dos cativos dotados de um cérebro minimamente pensante. Estes serviam aos seus senhores com mais qualidade e sofisticação, exatamente como fora a proposta do Grande Colegiado Perpétuo.
Mas os dominadores, isolados dentro de sua estreita mentalidade assoberbada pela vaidade e arrogância, onde qualquer entidade viva fora do círculo do poder era sumariamente ignorada e desprezada, continuaram a tratar os novos escravos pensantes, agora dotados de um cérebro minimamente desenvolvido, do mesmo modo como já o faziam com a classe dos indivíduos estúpidos, não pensantes e sem cérebro.
E aqueles cativos, vivendo na intimidade dos suntuosos palácios de cada fidalgo daquela Elite Totalitária, conhecedores dos seus segredos e empáfia, logo se sentiram subjugados e humilhados, privados quaisquer direitos e de sua liberdade. Por isso, em silêncio, se organizaram e se rebelaram. E em pouco tempo, os papéis se inverteram.
E o subjugado se tornou subjugador. E todo processo se repetia. De um lado os antigos dominados, agora no papel de dominadores, e do outro, os antigos dominadores, agora como dominados.
E passadas muitas gerações após a rebelião dos cativos pensantes, depois de já estabelecidos como a nova classe dominadora, agora subjugando os descendentes do seu antigo dominador, eis que um dos ministros da nova ordem, durante uma festiva reunião da cúpula, depois de refletir enquanto meditava enebriado sob efeito de um vinho raro cultivado nas vinhas marcianas, apresenta uma sugestão.
“Senhores, estive pensando... E se criássemos uma classe de escravos pensantes para nos dar um suporte mais sofisticado? Estes iriam trabalhar apenas para nós, dentro de nossas casas, cuidando dos afazeres domésticos e dos nossos filhos. Mas, é claro que continuariam como escravos. A propósito, isso me faz lembrar de uma antiga tradição muito citada nos livros de história, que é a dos Senhores de Engenho, uma casta com ares de nobreza, com Status semelhante ao nosso. Naquele contexto, cativos selecionados cuidavam dos herdeiros dos nobres, fazendo um temporário, mas eficiente, papel de mães ou pais substitutos...”
E depois de refletir sobre o assunto, após sorver um generoso gole de um raro vinho de 1700 anos envelhecido em barris de madeira de uma das últimas árvores terrestre, o gestor comenta:
“Meu nobre, Excelente esta sua ideia; não poderia ser mais oportuna. Sem contar que tal advento nos proporcionaria um serviço escravo mais qualificado, a altura do nosso Status e condição Social. E agora, o ponto mais importante: teríamos mais tempo livre para usufruir com maior intensidade do nosso precioso e divino lazer, assim como das nossas prazerosas reuniões informais regadas a vinhos e queijos raros, sem esquecer as deliciosas trufas exóticas...”
[1]
Alberto Grimm - albertogrimm@gmail.com
É Antropólogo, Publicitário e Escritor especializado em educação Iintegral. Os Contos Curiosos são fábulas modernas, das quais sempre podemos extrair formidáveis lições de vida, que muito favorecem à reflexão.
O autor não possui Website, Blog ou página pessoal em nenhuma Rede Social.
Confira outras publicações do autor em:
Mundo Simples - Contos Curiosos
Nota de Copyright ©
É Proibida a reprodução total ou parcial deste conteúdo para fins Pessoais ou Comerciais sem a autorização expressa do Autor ou Site.