Autor: Alberto Grimm[1]
Publicado: 15 de Agosto de 2024
A luz intensa da lua cheia mais parecia a camada transparente de uma espécie de tinta brilhante aveludada, que suavemente fora espalhada sobre as copas das árvores daquela mata virgem, assim como das superfícies dos lagos, pequenos e médios, possíveis de se ver do ponto mais elevado daquele magnífico vale, da centenária varanda, daquele extraordinário casarão erguido sobre uma sólida e majestosa colina de basalto brilhante.
A visão era deslumbrante, e mesmo o mais insensível dos homens não deixaria de se comover diante de tão exuberante obra de arte não concebida por mãos humanas. E não fosse o vento frio seguido pela densa neblina que aos poucos fora apagando o belíssimo cenário noturno, o reflexivo visitante, que em absoluto silêncio a tudo aquilo observava, certamente não teria se recolhido antes da meia noite.
No entanto, não o fez contrariado, pois sabia que no dia seguinte, aquela magnífica obra de arte magistralmente pincelada pelas mãos invisíveis da natureza, outra vez estaria à sua espera. Ficaria torcendo apenas para que o nevoeiro chegasse um pouco mais tarde, assim poderia usufruir um pouco mais de tão esplêndida visão, sempre acompanhada por aquele impagável e acolhedor sentimento de paz interior.
O imponente casarão era uma construção antiga, cuja resistência ao tempo constituía um mistério a parte. Seus muitos quartos, ainda conservavam o aspecto original, tal qual haviam sido planejados e concebidos séculos atrás. Intocados até em sua decoração interior, quando os audaciosos pioneiros ergueram o extravagante monumento no alto daquela íngreme e desafiadora colina, passavam a ideia de que naquele ambiente o tempo não passara.
A escolha do local fora calculada, e certamente com uma dupla intenção: perceber a aproximação de visitantes indesejados, e muito provavelmente usufruir da paz proporcionada pelo intencional isolamento e aprazível visão panorâmica do lugar.
Mas, com o passar dos anos, a casa ganhou uma fama um tanto quanto indesejada, algo que possivelmente não fazia parte da proposta inicial dos seus audaciosos construtores.
Diziam que era mal assombrada. O senso comum era que, de tempos em tempos, pelos estreitos e longos corredores dos seus três espaçosos andares, gritos, gemidos, sussuros, gargalhadas, e passos realçados por pisadas fortes, eram absolutamente audíveis, e algumas vezes acompanhados pelos respectivos vultos, especialmente em noites coroadas pela lua cheia, como aquela.
Por isso os pesquisadores faziam verdadeiras peregrinações ao remoto retiro em busca das tais aparições, ora para ilustrar seus compêndios científicos, ora para usar como recheio para livros e revistas cuja temática era o fantástico. Outras vezes, usavam do argumento apenas como meio cientificado para tentar compreender os mistérios da vida e da morte. Entretanto, aquele novo inquilino não estava ali por nenhum destes motivos.
Sua pauta era outra. Viera a trabalho, no papel de avaliador, representando uma importante organização encarregada de classificar retiros isolados pelo seu grau de exotismo, o que significava uma atração a mais para as centenas de visitantes, cuja lista de espera para se hospedar no local se estendia por vários anos. Tanto que até mesmo existia um mercado paralelo, apenas para atender aos mais apressados em conhecer a peculiar fama e deslumbramento daquele reservado, enigmático e sem dúvida encantador, recanto.
Por conta própria, ou até como lastro para qualificar ainda mais sua expertise e habilidades avaliadoras de lugares tão extraordinários, estudara profundamente as singularidades do mundo esotérico e seus mistérios; sua peculiar relação com nossos medos mais profundos. E depois de longos anos diante dos aspectos que a ciência humana classificaria como eventos inexplicáveis, destacara-se como o melhor em sua função.
E já recolhido ao seu quarto, percebe que os espessos cobertores de algodão não eram suficientes para protegê-lo de uma intensa onda fria que repentinamente adentrara no recinto, e o motivo, pelo menos para ele, era bastante simples: aquela, definitivamente, não era uma friagem comum.
Mas ele Já conhecia a explicação oficial, pois todos diziam que os quartos do suntuoso casarão estavam impregnados com Ectoplasma, uma substância transparente, invisível aos olhos comuns, que emanava dos espíritos que ali residiam. Assim, segundo seus estudos, a principal evidência da existência ou presença de seres extrafísicos no local, seriam as variações da temperatura ambiental, os breves episódios intercalados por calor ou frio a saturar os cômodos. No entanto, a indumentária térmica que já vestia e que fora especialmente planejada para a ocasião, ajudava a contornar o problema, por isso, serenamente adormeceu sem muito esforço.
Acordou, não sabe quanto tempo depois, ainda a experimentar aquela sensação própria da Hipnagogia(1), com batidas surdas que estremeciam a porta. E ainda atordado pelo entorpecedor efeito da hipnagogia(1), nem parou para refletir sobre as Histórias das Assombrações do local, motivo pelo qual pulou da cama, e sem titubear, dirigiu-se à porta.
(1) A hipnagogia é um estado diferenciado de consciência que ocorre entre a transição da vigília física lúcida e o estado de sono caracterizado pela semiconsciência.
Ao abrir a porta, não viu ninguém, por isso duvidou que as batidas tivessem sido reais. “Acho que acordei no meio de um sonho...” sussurrou para si mesmo, e voltou à cama. E logo adormeceu embalado pelo silêncio absoluto. No entanto, sem saber precisar exatamente quanto tempo se passara, sentiu que alguém entrara no quarto, embora não fosse capaz de enxergar com clareza de quem se tratava.
Ainda desconcertado, de repente sentiu-se imobilizado, preso à cama, impossibilitado de mexer braços ou pernas, ou mesmo a cabeça, embora fosse capaz de movimentar os olhos. E estes vasculhavam até o ponto onde suas órbitas o permitiam, tentando encontrar o intruso que claramente adentrara no recinto. Foi quando percebeu que o estranho visitante sentara sobre o colchão da cama, a altura dos seus pés, e ali, na penumbra, permanecera de costas. Uma sensação de pavor insinuou tomar conta de seu equilíbrio emocional, até aquele momento, ainda sob controle da sua mais lúcida razão.
Passados alguns instantes, o estranho personagem começou a se mover. Em seguida ergueu-se e caminhou para o lado da cabeceira da cama que estava fora do seu campo visual. Por algum motivo desconhecido, a presença daquele estranho personagem, o deixava em pânico, principalmente por não ser capaz de saber o que ele estava fazendo, ao lado da sua cama, fora do seu campo de visão. Sentiu então que ele, em pé e em absoluto silêncio, o observava do outro lado da cabeceira, com o corpo colado à sua cama.
Tentou de todas as formas virar o corpo em sua direção, libertar-se daquele incomum torpor que o impedia de mover-se, mas todo esforço que fazia era em vão. A extraordinária força paralisante e opressora que o mantinha imóvel e preso à cama, parecia impossível de ser superada.
E ali o estranho personagem permaneceu por alguns instantes, para em seguida deslocar-se para o outro lado da cabeceira, aquele dentro do seu campo visual. E ali permaneceu imóvel por alguns segundos que pareciam horas, sempre tomando o cuidado de continuar de costas, preservando seu rosto. Ele pode então constatar que se tratava de alguém com um capuz à cabeça, com o corpo coberto por um capote negro que moldava seu corpo de maneira anatômica, sem, contudo, deixar de fora nenhuma parte.
Tentou desesperadamente mover-se, mas todo esforço era inútil. A cama parecia imantada por uma força esmagadora e sobrenatural capaz de mantê-lo absolutamente imóvel. E por mais que tentasse, não conseguia libertar-se daquela extraordinária letargia. E, a cada movimento que ensaiava, parecia que a gravidade o pressionava ainda com mais força para baixo na direção do interior do colchão. Começou a ficar apavorado quando o estranho personagem, que agora sabia tratar-se de uma velha senhora de rosto enrugado, pálido e inexpressivo, subiu sobre sua barriga para em seguida, com suas mãos pesadas e tenazes como garras, começar a tentar sufocá-lo.
Mais uma vez, tentou gritar, mas suas cordas vocais pareciam emperradas, e de sua garganta, apenas uma espécie de gemido de baixa intensidade e sem forma definida se podia ouvir. Ficou em pânico pela absoluta incapacidade de mover braços, pernas ou qualquer outra parte do corpo. E enquanto lutava em vão para livrar-se daquela paralisia inexplicável, de repente se viu caindo em um espaço vazio.
Acordou com a queda, ao lado da cama. Logo percebeu que tudo não passara de um sonho. Um terrível pesadelo, daqueles que só ouvira falar nos contos de assombração ou nos relatos de suas pesquisas sobre o mundo das coisas ocultas. “Sem dúvida, era a velha Bruxa, do fenômeno da Paralisia do Sono ou pesadelo, exatamente como sempre a descreveram nas antigas lendas...”, balbuciou para si mesmo, ainda trêmulo, mas absolutamente lúcido e sem medo, enquanto se erguia do chão e acendia as luzes do quarto.
Certamente que, naquela noite, definitivamente, não mais conseguiria pregar os olhos, mas não por temer alguma coisa, e sim pelo incomparável estado de euforia por ter experienciado a manifestação genuína de um evento extrafísico que, até aquele momento, para ele, no papel de pesquisador, não passava de uma lenda, hipótese ou mito primitivo. Por isso mesmo, certamente, naquela noite não mais conseguiria dormir nem com a ajuda do mais poderoso sedativo.
“Perfeito, pode desligar...”, exclamaram eufóricos, mas ao mesmo tempo intrigados, os cientistas encarregados daquela revolucinária simulação.
“Senhores, uma vez mais, ele reagiu como gente. Foi capaz de pensar, e de acordo com a leitura do eletroencefalograma espectral, chegou a sonhar. O mais curioso, coisa de fato intrigante, extraordinária e ao mesmo tempo assombrosa, é que ele teve sensações e reações físicas com base apenas nas memórias de outro indivíduo que colocamos dentro do seu cérebro virtual. Entretanto, o detalhe mais inusitado e fantástico de tudo isso, algo que foge completamente à nossa compreensão, é que suas reações de medo motivadas pelo pensamento lógico demonstraram sentimentos e sensações verdadeiras, inacreditavelmente semelhantes às reações humanas...”
Aquele era um evento único na história da Biotecnologia Robótica. Afinal de contas, tratava-se do primeiro protótipo de Humanóide Cibernético semi-biológico portador de um cérebro quântico eletrônico dotado de Inteligência Artificial, capaz de aprender por conta própria, assim como pensar e reagir, pelo menos em teoria, como gente.
Ocorre que, de modo incompreensível e imprevisível, algo que absolutamente estava fora do escopo daquela pesquisa, aquele humanóide fora capaz de sonhar, sentir e vivenciar de maneira lúcida, tudo que com ele se passara, e como se isso não bastasse para deixar todos pesquisadores ali presentes perplexos e sem rumo, ainda apresentara reações mentais e somáticas similares em efeito ao que já sentiam os seres humanos.
Tratava-se, portanto, de um advento que, até aquele momento, segundo a ciência, era algo considerado impossível de acontecer com autômatos dotados de Inteligência Artificial.
[1]
Alberto Grimm - albertogrimm@gmail.com
É Antropólogo, Publicitário e Escritor especializado em educação Iintegral. Os Contos Curiosos são fábulas modernas, das quais sempre podemos extrair formidáveis lições de vida, que muito favorecem à reflexão.
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