Autor: Alberto Grimm[1]
Publicado: 15 de Agosto de 2024
Depois das incontáveis mudanças na genética de tudo que era dotado de vida sobre a terra, muitas coisas aconteceram. Novas espécies animais surgiram. No principio eram apenas animais feitos “sob encomenda” para atender a demanda recreativa das crianças. Sim, a moderna ciência agora era capaz de criar brinquedos orgânicos vivos, como, por exemplo, um animalzinho novo, e tudo isso de acordo com as preferências ou nível de demência de cada cliente.
E para ajudar na escolha do novo espécime, aberração ou animalzinho criado de acordo com os dotes artísticos ou neuróticos dos seus criadores, eram disponibilizados simuladores eletrônicos, onde as crianças, jovens e adultos podiam misturar diferentes partes de diferentes animais para dar origem a algo bizarro, insano, engraçado ou criativo, como alardeavam dia e noite em grandes produções, as exuberantes Campanhas de Marketing Doutrinadoras de Crianças, Jovens e Adultos.
Agora era possível fazer isso com animais de verdade. Era simples, e bastava se dirigir ao balcão de uma das lojas credenciadas e solicitar o animal desejado, por mais estranho e improvável que pudesse parecer. O próprio cliente podia desenhar o modelo em um dos Simuladores de Última Geração disponíveis para isso. Em dois dias estava pronto, já no tamanho desejado, de acordo com as preferências, delírios, nível de alienação ou volume de perturbação mental de cada solicitante.
E durante um bom tempo, o sonho de consumo entre as crianças, era um modelo que contava histórias na hora de dormir. Era a sensação do momento, o assunto e mimo predominante entre os influenciadores digitais, das mesas de debates e seminários de filósofos, educadores e psicologistas; o “Top” dos “Tops”, a “Galinha dos Ovos de Ouro” dos fabricantes, e o principal foco das maciças campanhas publicitárias que praticamente obrigavam cada lar com crianças a ter um ou mais exemplares.
Seus olhos eram de gato, o que o tornava perfeito até para ler no escuro. Sua voz era humana, serena, melodiosa, suave, como a voz de um grande orador, ou oradora, ajustada especialmente para os sensíveis ouvidos infantis. Seus dedos aveludados, assim poderiam acariciar os pequenos fazendo um temporário papel de mãe, pai ou babá.
Use sua imaginação e lá estava o animal correspondente. E se espalharam sobre a terra, se multiplicando, dando origem a outros tantos espécimes exóticos. Para aqueles que não gostavam de animais, mas apenas das suas carnes, agora era possível criar espécimes apenas para o corte, de acordo com o gosto ou nível de obsessão de cada freguês. Podia ser com diferentes sabores, consistências, já temperados, e assim por diante.
Não havia um limite ético estabelecido onde a ciência pudesse afirmar: “Aqui nós paramos; deste ponto em diante, não é mais possível, nem ético, continuar...”
E tudo era feito para servir ao novo homem. Este, aliás, modificado geneticamente, de modo a não mais padecer de nenhuma doença. Fato que no princípio fora um grande problema para os médicos, políticos, corporações sectárias e todos aqueles que não mais podiam lucrar ou se promover motivados pelo caos na saúde, ou nível de sofrimento daquele povo. Isso, sem falar no gigantesco prejuízo que tiveram as grandes Corporações Farmacêuticas.
Estas, aliás, com estilo e notável elegância, deram a volta por cima, e agora dominavam o império das mudanças genéticas. Lucravam mais do que no tempo das grandes doenças e pandemias, onde o caos predominava.
Entretanto, como é impossível agradar a todos, alguns conservadores, ou saudosistas dos tempos turbulentos e caóticos do passado, ainda se lamentavam: “Saudades daquele tempo, quando as grandes pragas eram presenças corriqueiras em todos os meios sociais; onde as doenças crônicas desfilavam com sua notável nobreza; quando sabíamos que nossas medicações, além de não curar, criava dependentes ainda mais doentes. Dependentes que eram fiéis e sempre voltavam espontaneamente às farmácias e postos de saúde em busca dos nossos mimos de efeito placebo. Nossa, impossível é descrever o tamanho da saudade que sentimos daqueles gloriosos dias...”
E os animais criados geneticamente ganharam inteligência. Mas, não Sensatez, afinal de contas, tiveram como exemplo comportamental e base cognitiva os seus criadores, ou seja, o próprio homem. E modificaram-se também os insetos, e mesmo os espécimes virais. Mas a história não poderia ter sido escrita de outra forma. Com o aumento da expectativa da vida humana para um patamar quase infinito, logo todos se perguntavam se o paraíso não seria algo semelhante a tudo aquilo que ora, em vida, já desfrutavam na terra.
Sendo assim, não mais parecia sensato que alguém precisasse mudar de ares, ou fazer uma transição forçada para se tornar inquilino de um plano existencial extrafísico, o que nas entrelinhas, significava morrer, uma vez que, conforme diziam as escrituras sagradas, aquele era o único e inegociável meio necessário para que então fosse possível usufruir de todos os mimos de um lugar chamado paraíso, um bioma idealizado de acordo com as preferências de cada hóspede, ou convidado.
No entanto, segundo o consenso geral, não mais havia a necessidade de nínguem “fazer esta mudança de ares extrafísica”, afinal de contas, tudo possível de ser degustado pelo ser humano, já estava ali, prontinho, disponível naquele momento, e com uma vantagem, sem custos, taxas, rituais, obrigações ou sacrifícios; sem a necessidade de filiações sectárias ou a intermediação de nenhum ministro religioso ou guru; sem esforço ou idolatrias; sem compromissos penitentes de nenhuma espécie.
E sem mais objetivos existenciais pela frente, e dotados de uma sobrevida quase interminável, encontrar atividades para manter cada indivíduo ocupado, se tornara o maior e mais crítico problema social de todas as nações. Desse modo, encontrar maneiras criativas para preencher um longo e tedioso dia, acaba por se tornar o objetivo existencial daquela humanidade. Por isso, tudo era permitido.
E Ninguém mais adoecia, nem precisava tomar remédio, nem se curvar aos deuses para obter cura, saúde ou prosperidade, afinal de contas, tudo isso já se possuía, desde o berço, sem nenhuma contrapartida, obrigação, idolatria, compromisso de fidelidade ou ritual a cumprir.
Mas, com o tempo, viver eternamente não mais parecia ser um dote assim tão vantajoso, ou uma tarefa tão simples e prazerosa, quanto se pensava a princípio.
E o imenso tédio de se viver centenas de milhares de anos, sempre repetindo as mesmas experiências, sem a promessa de um paraíso indefinido repleto de novidades a lhes esperar em um lugar incerto, e ainda atormentados pelo fato de que não era possível fugir de uma rotina eterna mecânica e inflexível, levou este homem à insensatez, e da insensatez à total destruição do seu avançado modelo de mundo.
Por isso sobraram apenas os escombros das grandes cidades, e as cinzas das grandes florestas, assim como o deserto de pedregulhos e lama, onde antes existiam os mares, rios e lagos de águas límpidas e profundas.
Explorando aquele remanescente ambiente sabidamente hostil, onde o perigo poderia estar à espreita dos descuidados, o explorador se deteve no alto da colina e observou pacientemente o cenário desolado abaixo, misterioso, silencioso, que não exibia o real perigo oculto em suas sombras. Sombras que, como espectros fantasmagóricos de uma alucinação, se erguiam impassíveis diante de seus olhos atentos.
Ali já fora uma grande e próspera cidade. Milhares de pessoas circulando em suas magníficas praças, largas e suntuosas ruas e avenidas, tomadas pelo burburinho das sofisticadas lojas, restaurantes, escolas, centros religiosos e recreativos, despreocupadas e imersas em seus mundos particulares, indiferentes, a consumir qualquer coisa, como autômatos sem vontade própria, até que o dia do “Juízo Final”, sem prévio aviso, de maneira triunfal, sem pedir licença, entrara em suas vidas.
E apenas os escombros chamuscados em contraste com aquele céu sempre cinzento e sem expressão, era tudo que agora se via. Quem, tomando como referência os dias de glória, seria capaz de imaginar aquele desfecho como ponto de chegada para tão exuberante, autossuficiente e orgulhosa civilização?
O explorador conhecia bem toda história. Afinal de contas, seus ancestrais viveram entre aqueles habitantes. Foram concebidos a partir da ciência deles. Lembrou das Antigas Escrituras, onde o homem dito civilizado, que exaltava sua compaixão para com a vida, desprezava os animais ao tê-los como fonte preferida para sua alimentação.
Aliás, esta sempre fora uma questão que pessoalmente o incomodara por algum tempo. Se aquele homem se dizia civilizado e respeitador, por que desprezava a vida dos demais seres vivos? Lembrou que anos atrás, este fora o assunto da premiada tese do seu primeiro doutorado.
Do ponto de observação onde estava, era possível ver se esgueirando entre as sombras, uma das criaturas híbridas ainda existentes. Era meio homem e meio verme; um espécime que evoluíra naturalmente. Um desdobramento, uma mutação do próprio homem bárbaro que restara após a destruição.
E como a genética de ambos, verme e homem era semelhante, o processo de fusão fora um evento espontâneo; um processo seletivo natural que o permitira adaptar-se ao novo e inóspito ambiente, criado por ele mesmo. Assim surgira o “Homus-vermes-rasterus”, uma temível e cruel espécie predadora de todos os demais animais, e até da própria linhagem.
Tratava-se de um inimigo natural de todos, por isso todo cuidado com ele era pouco. Mas, a exemplo do seu antecessor, era pouco inteligente. Preocupava-se apenas em caçar e depois comemorar suas conquistas, sem se preocupar com o dia seguinte. Particularmente, pensava o observador, que aquela espécie era uma ameaça ao equilíbrio de qualquer mundo que prezasse pelo incondicional respeito à vida e harmonia. Por isso deveriam ser mapeados para que depois fossem isolados das demais espécies. E esta, naquele momento, como observador qualificado e cientista, era a sua missão.
Felizmente, graças às mesmas mudanças genéticas responsáveis por tudo que acontecera, agora a espécie predominante naquele mundo era outra. Um novo “ser”. Este, aliás, mais respeitador do seu próximo; mais coerente em seus princípios éticos.
Lembrou que antes do “grande dia”, os pioneiros de sua espécie, viviam como subjugados e cativos do poderio e crueldade dos antigos habitantes, os ditos humanos civilizados, servindo apenas como material biológico, cobaias vivas para suas pesquisas, ou petiscos para seus animais de estimação. Ele, um simples Rato Branco, espécime criada em laboratório, agora com maior capacidade intelectual e mente superior a dos antigos, cruéis e insanos dominadores.
Agora, com maior estatura, medindo cerca de sessenta centímetros de altura e caminhando naturalmente sobre duas pernas, com braços longos e mãos dotadas de polegares opositores plenamente desenvolvidos, sem cauda e com um rosto de aspecto humano juvenil, deixara de rastejar desde tempos imemoriais, um caminho inverso ao que seguiu seu antigo, bárbaro e injusto opressor.
Sem perder mais tempo, transmitiu à sua base o local que deveria ser considerado de alto risco para os seus, uma vez que a presença do temível “Homus-vermes-rasterus”, fora ali detectada.
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Alberto Grimm - albertogrimm@gmail.com
É Antropólogo, Publicitário e Escritor especializado em educação Iintegral. Os Contos Curiosos são fábulas modernas, das quais sempre podemos extrair formidáveis lições de vida, que muito favorecem à reflexão.
O autor não possui Website, Blog ou página pessoal em nenhuma Rede Social.
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Mundo Simples - Contos Curiosos
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Alberto Filho - albfilho@gmail.com
É orientador e Consultor em educação infantil e adulta, inclusive da terceira idade, com especialização em Educação Integral e Holística. É também tradutor, Ilustrador, escritor de contos infantis e adultos.
O autor não possui Website ou Blog pessoal.
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