Autor: Alberto Grimm[1]
Publicado: 15 de Agosto de 2024
Sim, agora era possível comprar um motivo existencial nas lojas especializadas credenciadas. No entanto, era preciso ter cuidado, especialmente com os modelos não oficiais, aqueles não homologados pelo CCM, Centro de Controle de Mentes, cuja programação fora cuidadosamente avaliada pelo comitê encarregado de reprogramar Cérebros.
Não se podia facilitar, pois algumas versões “Piratas” que circulavam pelo submundo possuíam em suas diretivas protocolos e gabaritos perigosos, algumas posturas, comportamentos, condutas e procedimentos considerados de alto risco, algo que poderia ameaçar de maneira importante toda estabilidade do sistema.
Ocorre que nas opções “Piratas”, os comandos de submissão ao diretório central, assim como as diretrizes consumistas, os padrões depredadores do meio ambiente, da falta de bom senso, do culto ao belicismo, desrespeito ao próximo e idolatria à estupidez, não estavam incluídas. Sem contar que eram dotadas de um atributo terrorista: “A temida possibilidade de capacitar seu hospedeiro, ou usuário, a pensar por conta própria e desenvolver o temível Senso Crítico!”
Afinal de contas, o fato de pensar por conta própria poderia subverter todo um processo milenar de condicionamento de mentes; um eficiente método de Lavagem Cerebral que os Membros do Comitê Gestor Perpétuo secretamente administravam com a intenção de controlar seus cidadãos. Naquele sistema, ainda na maternidade, cada recém nascido era contemplado com dispositivo eletrônico microscópico dotado de um gerenciador de cérebros controlado remotamente pelo regime totalitário, que assim, desde cedo, era capaz de monitorar, domesticar e doutrinar seus cativos súditos.
E como parte da tradição, em cada cérebro de criança nascida e portadora daquele dispositivo obrigatório homologado por lei, era inserido uma crença religiosa, uma ideologia, um conjunto de desejos e necessidades, algumas predisposições pessoais, uma preferência profissional e resíduos de um motivo existencial padrão, protocolos de praxe que faziam parte de cada personalidade.
Quanto aos demais caracteres, ou traços necessários para compor integralmente o perfil de cada indivíduo, o sistema condicionador de cérebros, por meio de sinais eletromagnéticos transmitidos via satélite, se encarregaria de ir acrescentando à medida que seu portador crescia.
E a capacidade de “não ser capaz de pensar por conta própria”, sem dúvida era a mais importante destas “cláusulas”, ou atributos obrigatórios.
E tudo precisava ser feito em segredo; chamar a atenção pública era tudo que não desejavam. Afinal de contas, cada cidadão crescido deveria acreditar que estava no controle de sua vida pessoal, que era dono de suas ideias e vontade, que possuía um senso crítico contestador, um senso de justiça e preceitos éticos exemplares, e que seu acervo de idiossincrasias era autêntico e único.
Livros didáticos, infantis, ficção e auto-ajuda, revistas, jornais, músicas, crenças e doutrinas, programas de televisão, filmes, mídias Sociais, documentários históricos, tudo fora cuidadosamente preparado para criar o modo de pensar “desejável” de cada indivíduo, e sempre de acordo com as normas necessárias para mantê-lo agrilhoado sob as rédeas dos ideais, desejos e motivos existenciais homologados pelo sistema.
E cada cidadão, após ter alcançado a maioridade, deveria acreditar que era capaz de escolher livremente seus objetivos de vida, assim como opinar imparcialmente sobre suas escolhas. Deveria ainda acreditar que era um feliz detentor de um atributo que chamaram de “Livre Arbítrio”. E tudo isso fazia parte da programação cerebral básica de cada nativo daquele novo mundo.
Ninguém precisava perder tempo, ou esquentar a cabeça pensando por conta própria, afinal de contas, a Central de Condicionamentos, um repositório de pensamentos catalogados e adequados para cada situação da vida, se encarregaria de transmitir a cada cérebro, sempre de acordo com a demanda de cada hospedeiro devidamente cadastrado, todos os procedimentos operacionais necessários para que cada personagem fosse capaz de agir no dia a dia como gente ou indivíduo adestrado; tudo dentro da mentalidade padrão, ou tradições próprias de cada mesologia.
E se cada habitante recebia de berço os primeiros traços do seu provável motivo existencial, esta cláusula poderia ser modificada no futuro, a depender das necessidades sociais fixadas pelo sistema, como, por exemplo, uma demanda maior por médicos, jardineiros, advogados, garis, cientistas, influenciadores sociais, vendedores de cachorro quente, delinquentes, estes últimos para manter o sistema de segurança pública em atividade, e assim por diante. Por isso ficava em aberto a possibilidade de modificação desta diretiva, embora para o sujeito que era reprogramando remotamente, nada disso fosse perceptível.
E Tudo ia bem, até que o próprio governo teve a ideia de Privatizar o processo de escolha dos motivos existenciais, e tudo isso para atender às reivindicações das grandes corporações religiosas com fins lucrativos, dos empresários do segmento midiático, assim como dos grandes colegiados políticos, onde a disputa por novos adeptos ou simpatizantes, isto é, a conquista de novos cérebros e fidelização dos antigos, tornara-se uma acirrada competição, uma verdadeira batalha.
A ideia inicial fora a confecção de “Kits Existenciais”, onde os indivíduos teriam entre seus objetivos de vida, a “sugestão” para se tornar um entusiasta de um dos milhares de novos segmentos Religiosos, ou um consumidor voraz de qualquer outra coisa, fosse coisa material, modismo ou simples paranóia psicológica. O resto, o marketing necessário para atrair novos partidários para um ou outro rebanho, ideologia ou tendência, isto seria um problema que ficaria a cargo do departamento de Marketing de cada congregação, movimento sectário ou ideológico, corporação midiática ou fabricantes de bens duráveis.
Assim, uma empresa devidamente credenciada, homologada pelo rigoroso crivo do sistema, poderia vender “Motivos Existenciais” alternativos para qualquer cidadão, desde que, evidentemente, estes motivos não fizessem oposição ao milenar modelo de controle de mentes administrado com rigor exemplar pela cúpula do discreto, e praticamente invisível, Comitê Gestor Perpétuo.
Daí o risco das temíveis cópias clandestinas que circulavam no mercado paralelo. Elas ensinavam a pensar de verdade; a duvidar de tudo; a investigar a veracidade dos fatos antes de replicar os novos boatos, ideias, modismos e posturas discretamente disseminadas pelos canais oficiais. Ensinava a temível técnica de aprender por meio da experiência pessoal, o que era contrário à lei vigente, que há séculos esta possibilidade erradicara dos cérebros cadastrados.
Neste momento, aprender por meio da experiência pessoal, ou seja, o antigo Princípio da Dúvida, era considerado um crime hediondo. Desse modo, ter dúvida sobre algum paradigma, especialmente em relação às induções totalitárias da tradição, era considerado um delito dos mais graves. E ensinar a duvidar de tudo, era exatamente o primeiro atributo que fazia parte dos Motivos Existenciais das cópias piratas, que secretamente circulavam no mercado paralelo.
E campanhas maciças de propaganda enfatizando que aquelas cópias não oficiais causariam danos irreversíveis aos cérebros dos usuários, agora faziam parte da grade de programação diária de cada canal midiático. E também do conteúdo acadêmico de todas as instituições, livros adultos e infantis, dos compêndios e doutrinas sacras, revistas em quadrinhos, e até mesmo dos rótulos dos alimentos.
E nas redes sociais, logo também entram em ação exércitos de competentes influenciadores virtuais doutores em lapidar cérebros. E até os livros de história e religiosos tiveram seus textos rapidamente “adaptados”, reconstruídos de modo a proclamar, enfatizar, alertar sobre os malefícios daquela prática terrorista, que era o ato de aprender a Pensar por Conta Própria
Assim, todas as fontes de referência antigas, revistas e livros, já que eram apenas compêndios virtuais, foram destruídos. E tudo foi refeito, e republicado, e os antigos textos foram atualizados, reformados para conter apenas as novas determinações e procedimentos, e tudo claro, de acordo com as normas e protocolos do Comitê Gestor Perpétuo.
E nos cultos sectárias que proliferavam nos canais midiáticos tradicionais com a intenção de manter domesticados os cidadãos sob tutela do Comitê Gestor, os antigos “textos sagrados” usados nas preleções doutrinárias foram devidamente “atualizados”, de modo a ressaltar, enfatizar e consolidar as novas diretrizes. E a este movimento chamaram de “Reforma Cerebral da Nova Era”. E os doutrinadores foram instruídos a destacar em suas pregações, cultos e colóquios que o ato de “Pensar por conta Própria”, na verdade, tratar-se-ia de uma Possessão Diabólica; uma espécie de influência maligna, portanto, digna de excomunhão sumária.
Motivo pelo qual, cada indivíduo recebeu o cargo eletivo de observador ativo do estado. Uma espécie de fiscal divino ou social, cuja missão era, de modo discreto, bisbilhotar a intimidade dos seus contemporâneos em busca de atividades suspeitas, mesmo que fossem seus próprios pais, amigos, irmãos ou parentes. Identificado os supostos subversivos, estes deveriam ser denunciados.
Uma singular recompensa, reconhecimento público e a citação no sagrado livro do Comitê Gestor Perpétuo, uma espécie de garantia de crédito no outro mundo, além de privilégios diferenciados neste, era o que esperava cada dedo duro seriamente comprometido com a causa.
Mas as cópias Piratas acabaram por encontrar seu nicho naquela civilização, e se multiplicaram, e por um longo tempo houve o conflito entre os cérebros pensantes e os cérebros cognitivamente calcificados. Mas o governo central controlava as armas de destruição em massa, que eram gerenciadas pelas máquinas, que foram sabotadas pelos Hackers pensantes, por isso, o tiro saiu pela culatra quando foi dada a ordem para o extermínio do inimigo.
Confusos, por serem programados para agir de maneira não racional, os cérebros cibernéticos, contaminados por falsas informações, acabaram por destruir tudo, eles próprios inclusive. E como tudo que existia na face da terra fora literalmente desintegrado ou transformado em pó, só as formas de vida nativas das grandes cavernas sobreviveram.
E entre elas estavam os híbridos, seres geneticamente modificados, uma espécie de toupeira não cega e capaz de pensar. Um espécime inoculado com o DNA humano e temperado com a genética dos Ratos dos esgotos radioativos, milhares de anos atrás. Os cientistas fizeram tal experimento por motivos estratégicos. Mas depois que aprendeu a pensar por conta própria, a nova Cria Genética, que fugira dos próprios criadores, nunca mais saiu de suas profundas tocas subterrâneas.
Dotado de uma extraordinária capacidade de adaptação à condições ambientais extremas, sobreviveu, e aos poucos colonizou outra vez seu antigo mundo. E, por mais incrível que pareça, até que viviam de modo harmonioso e civilizado, organizados em comunidades não competitivas e sem hierarquias sociais capazes de privilegiar alguns grupos e preterir outros.
No entanto, milhares de anos depois, um grupo de arqueólogos faria uma descoberta que mudaria para sempre o destino daquela promissora, evoluída e exemplar civilização.
Encontraram aquilo que ficou conhecido como o “O Livro Sagrado das Revelações”. Tratava-se de um livro escrito pelos seus antigos ancestrais; uma espécie de tutorial que explicava passo a passo como tudo funcionava na Extinta Civilização anterior. E ali, escrito num dialeto que eles, como crias daquele antigo bioma, conheciam bem, os autores realçavam com suprema devoção, glorificando a positividade e benefícios do modelo de mentalidade dos dominadores naqueles dias de glória.
“Imagina só, naquele tempo, alguns trabalhavam para servir uma minoria que se autodenominavam como governantes ou representantes de uma entidade protocolada como divina. Este título conferia ao beneficiário o direito de subjugar uma casta conhecida como “servos”. No papel de cientistas e antropólogos, é nosso dever estudar com mais profundidade este curioso e delicado material. Eventualmente, quem sabe, deste tratado, talvez possamos garimpar alguma coisa bastante útil para incrementar aos motivos existenciais de nossa atual civilização; alguns princípios necessários para alavancar nosso processo evolutivo...”, comentou eufórico um deles.
Pouco tempo depois, um daqueles cientistas fundaria a primeira instituição sectária desta nova civilização, cujo sugestivo título era: “Os Mensageiros da Verdade Absoluta”. Mas os problemas realmente começaram quando outras corporações sectárias vieram a campo reivindicar este título para si. Surgia então um conceito novo entre eles, o Antagonismo e a competição, assim como as hierarquias sociais e as castas dominadas e as dominantes. E naquele momento, apenas um fato se mostrava óbvio: Mais uma vez, a guerra, a aniquilação total da espécie, era apenas uma questão de tempo...
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Alberto Grimm - albertogrimm@gmail.com
É Antropólogo, Publicitário e Escritor especializado em educação Iintegral. Os Contos Curiosos são fábulas modernas, das quais sempre podemos extrair formidáveis lições de vida, que muito favorecem à reflexão.
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